Relembre a última entrevista de João Ricardo à TV7

Passaram sete anos desde que o ator deu esta entrevista. Na altura recordava alguns momentos dramáticos que viveu.

23 Nov 2017 | 22:32
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Numa altura em que se homenageia o ator João Ricardo que faleceu esta quinta-feira, 23, vítima de um tumor cerebral, o site da TV7 Dias recorda uma entrevista feita ao ator, há cerca de sete anos, por ocasião da Gala TV7Dias onde foi eleito Melhor Ator de Elenco, quando este ainda não sabia o que o futuro lhe reservava. 

«Filho de pais separados, viu-se condenado a crescer sem o colo da mãe, a quem só deu a mão três meses antes desta morrer. FugIu do pai aos 16 anos, domiu na rua, roubou para comer e escapou por pouco a uma vida de marginalidade.

Quando escrever um livro auto­biográfico, o título será “A Amar­gura de Um Palhaço”, “por ser uma personagem dos afectos, que en­caixa o fracasso e a fatalidade”. João Ricardo, de 46 anos, procura constituir uma família, depois de fugir de casa aos 16 anos. Sem mãe e em rota de colisão com  o pai, dormiu na rua com os marginais…  para nunca ter de voltar atrás.   

João abre agora o livro da sua vida para os portugueses perceberem que o ator que nos diverte todas as noites, com o bo­nacheirão e bem-disposto Armando Cou-tinho, de Laços de Sangue, teve uma vida marcada por “buracos negros”, durante a infância e já na maioridade. Uma história  ainda não explicada ao filho, Rodrigo, de apenas cinco anos. 

A primeira ferida foi aberta há 42 anos e nunca chegou a sarar. Esteve cerca de 35 anos quase sem falar com a mãe e a aproximação só se deu no natal de 2003, três meses antes de ela morrer. “Ela fez-­­me muita falta”, confessa, com os olhos marejados. Os pais, Fernando Oliveira  Ricardo e Maria Eugénia Santos Ricardo, separaram-se quando tinha apenas quatro anos. “Há um intervalo na minha vida em que senti muito a falta da minha mãe. Ela faleceu há sete anos, mas vi a minha mãe menos de dez vezes, desde que ela se divorciou. Tenho todo este es­tigma de viver com um homem e uma avó. Foi com isso que cresci: com a ho­nestidade da educação, por parte do meu pai, e o colo da minha avó”, afirma. 

Longe de culpar os pais, João Ricardo sente que foi vítima de uma sociedade radical, na década de 60. “As separações eram raras, drásticas e violentas. Era do tipo: ‘Aquela é a tua mãe que se foi embora’. E o ‘foi­se embora’tem nomes por trás disso. Uma mulher que fugia por amor, ou por outra coisa, era cono­tada negativamente.”  

Apesar de ao longo do tempo ter ouvido diferentes versões sobre a separação dos pais, o ator teve plena noção – sem nun­ca o afirmar com todas as letras – que a mãe fugiu por amor. E reconhece que o pai é muito pouco emotivo.“O meu pai não é muito de afetos e foi machista… sem querer. A única vez que vi o meu pai chorar foi no funeral da minha mãe, e assumiu claramente que a tinha per­dido por culpa dele – hoje, quando fala dela, é com um enorme carinho.” 

O Natal perfeito… 35 anos depois 

“Pelas condições da vida”, João Ri­cardo nunca chegou a procurar a mãe. O momento mais cúmplice foi há sete anos. O ator recorda esses instantes com ter­nura:

“Nesse Natal, passámos por tudo. Estivemos a ver televisão, de mão dada, com um grande amor. Ficou tudo re­solvido, mas também ficou muito por dizer. Se calhar, é a pessoa que mais me protege. Vou visitar a campa dela, dizer-­lhe que estou aqui e para ela to­mar conta de mim – mesmo com esta idade.”

À boleia desta nostalgia, o ator expõe fragilidades. “Se ainda tivesse tido tempo para falar com ela, diria que mãe é sempre mãe. Obrigaram-na, sem que­rer, a ter um problema de consciência na vida, pela separação do meu pai, e a viver com esse estigma, e aquilo que queria dizer sempre à minha mãe, onde ela estiver, é que pode ficar tranquilís­sima, que eu reconheço que tudo o que ela fez foi para ser feliz – e um filho não tem de ser propriedade de ninguém. Sem querer, foi obrigada a recusar o filho, mas foi a melhor mãe do Mundo.” 

Trabalho pesado na infância 

A figura feminina mais presente na vi­da de João Ricardo acabou por ser a avó Joana, que morreu, aos 82 anos. “A mi­nha avó era de Estarreja e foi dela que recebi os beijos doces, que me faziam comichão porque ela tinha um bigodi­nho. Foi a minha avó que me levou aos filmes do Josélito! Era também ela que, sem querer, dizia mal da minha mãe, mas quando chegava ao Natal dizia: ‘Mãe é sempre mãe’”, recorda. 

Além de aprender a viver sem mãe des­de os quatro anos, João Ricardo também descobriu o que era trabalho duro bem ce­do. “Comecei a trabalhar aos 12 anos, como ajudante de motorista. A minha função era carregar pacotes que pesa­vam imenso e que ia distribuindo pelas farmácias. Apesar da idade, nunca fui tratado como um miúdo. Era carga dura! Agora, olho para trás e faz-me refletir sobre a vida. Trabalhar aos 12 anos era muito injusto. Chegava ao limite das minhas forças.” Mais tarde, te­ve outro trabalho pesado. “Com 16 anos, fui trabalhar para as obras. Estive na construção do Shopping Amoreiras, em Lisboa. Senti uma grande revolta”, afir­ma, embora sem ponta de arrependimento. 

A iniciação no trabalho teve o incenti­vo do pai, que sempre se pautou por uma educação muito rígida. “Sempre tive muitos castigos que eram, normalmen­te, dormir na rua num dia em que não cumprisse o horário de chegada a casa, ou ficar sem comer – se bem que, quase sempre, a minha avó tirava e dava-me comida às escondidas. O meu pai só me bateu uma vez. Deu-me um pontapé e sofreu imenso com isso. E a primeira vez que o desafiei, atirou-me uma faca que passou muito ao lado.” 

Da fuga de casa à marginalidade 

Se a relação com o pai já não era das melhores, ficou completamente minada quando decidiu sair de casa, aos 16 anos. É aqui que começa a grande aventura: “O meu pai dizia-me que tinha de chegar a casa à meia-noite, senão era melhor nem vir. Um dia, cheguei de propósito às 00.05 H. Fugi de casa e só apareci dois dias depois. Entrei pela cozinha, para ir buscar o Bilhete de Identidade e alguns documentos das contas bancárias do meu pai, porque sabia que uma estava em meu nome. Levantei o dinheiro todo, apanhei o avião para Faro – sempre tive o sonho de andar de avião – e dormi num hotel, ao pé da baía. Telefonei ao meu pai a dizer que estava em Madrid, para que ele não mandasse ninguém atrás de mim”, recorda. 

Entretanto, voltou a Lisboa, já sem gran­de parte do dinheiro, e tornou-se um sem­-abrigo. “Dormi na Almirante Reis. Não havia os homens que dormem hoje na rua. Podia dormir em qualquer canto. Alimentava-me com o dinheiro que ga­nhava a trabalhar no Teatro de Carnide e, quando não dava para tudo, cheguei a roubar algumas moedas para comer.” 

Foi em Lisboa que viveu a vida mais sombria. “Vivi ao lado da marginalida­de, mas nunca caí nela. Passei muito frio e alguma fome, e vi muita coisa. Nessa altura, as madrugadas terminavam no Cais do Sodré, com os carregamentos de fruta e peixe, e vi muita gente a ir atrás das migalhas para sobreviver”, recorda. Apesar de conhecer de perto esse mundo, nunca se deixou seduzir pelo das drogas. Experimentou algumas… só leves. “Experimentei, mas nunca me viciei. Fumei o primeiro cigarro aos 12 anos e o primeiro charro aos 16, no jardim do Príncipe Real. Não fumei mais do que charros”, garante. 

Emigrante por conta própria 

Mais tarde, o destino levou-o a Toulou­se, França. Viajou pela Europa à boleia, mas a ideia morreu à nascença. “À pri­meira boleia, fiquei logo sem os docu­mentos. Recuperei-os no dia a seguir, com muita sorte, e terminei logo a aven­tura. Fiquei por França a fazer teatro de rua. Imitava os números de mímica do Marcel Marceau, que tinha visto no Casino Estoril. Tive uma autêntica vida de saltimbanco, porque a determinada altura ganhava muito dinheiro. Fiz te­atro de rua em Nice, dormia na praia, e em Cannes, onde ficava nos jardins.” 

Antes de ter ganho muito dinheiro em França, João Ricardo passou por Espanha – onde esteve uns tempos na comunidade religiosa Taizé e encontrou aquela que até há pouco tempo era o amor da sua vida (ver galeria) – e depois regressou a Portugal, para entrar para o Conservatório. “Alu­guei uma casa com uma atriz do Te­atro da Comuna, a Fátima Reis, perto de Caneças, onde nem tinha água. Fui estudar para o Conservatório e fiz par­te da turma da Alexandra Lencastre. Desde cedo percebi que aquela vida não era para mim. Não conseguia acordar às 07.00 H. Cheguei a ir estudar para Évora, mas como não tinha dinheiro para as propinas, acabei expulso.” Hou­ve ainda uma altura em que, para ganhar algum dinheiro, teve de ir cantar para a rua. “Cantei na Rua Augusta, com um amigo do Conservatório”, recorda. 

A vida só se recompôs quando fez fi­guração especial num filme e acabou por crescer como ator, quando voltou ao Te­atro de Carnide. “Quem acabou por me dar a mão foram o Manuel Cavaco e o António Parente, que na altura era o patrão da NBP. Se não fossem eles, muito provavelmente não estaria aqui, porque era muito rebelde e indisciplina­do. Até que um dia me disseram: ‘Ou te portas bem, ou as coisas não resultam.’” 

A imensa solidão 

Depois de ter dado “todas as cabeça­das na vida”, João Ricardo acabou por fazer as pazes com o pai, 12 anos volvidos. “Ele chamou-me depois da companhei­ra dele morrer com cancro. Sei que o meu pai sempre me amou muito.” No entanto, nunca falaram sobre o assunto. “A única coisa que o meu pai me diz é que eu o feri naquela altura, mas reconhece que errou. Eu também sei que o feri e que ele errou.” Entretanto, o progenitor também aprendeu a gostar do trabalho do filho. “É o maior propagandista do meu trabalho. Sente-se orgulhoso, apesar de nunca ter acreditado que iria ser ator. Quando eu lhe disse, aos sete anos, que era isto que queria, ele respondeu logo que aquilo não era para mim”, revela. 

Este afastamento do pai, admite, provo­cou-lhe danos psicológicos. “Fui um ho­mem só e a solidão entristece-me. Ainda hoje me sinto solitário. Nunca tive fa­mília, além do meu pai, e por isso sinto necessidade de formar família”, afirma. 

Apaixonado por Catarina 

João é uma pessoa de afetos. Precisa de viver rodeado de felicidade, carinho e amor. Atualmente, o seu grande objetivo é mesmo constituir uma família, ao lado da mulher certa, que ame incondicionalmente o filho, Rodrigo. “Esse momento está a chegar”, diz – convicção justificada na noite de dia 12, no Salão Preto e Prata, do Casino Estoril, depois de ter conquistado o troféu para Melhor Ator de Elenco, nos II Troféus TV 7 Dias de Televisão. Mesmo sem saber se ganhava, levou o discurso preparado. As duas folhas, que transbor­davam amor e felicidade, tiveram mesmo de sair do fato branco, e foi ali mesmo, no palanque, que gritou ao Mundo que estava apaixonado. Os destinatários eram dois: o pequeno Rodrigo e a sua atual namorada, Catarina. “Quero que comas amoras e espuma de leite”, assim começa o texto que lhe mostramos, junto às fotos da Gala. 

João Ricardo sente que entrou, final­mente, no caminho certo. “Estou apaixo­nado. Chama-se Catarina, mas não vive em Lisboa. Conheci-a há pouco tempo, mas é uma coisa tão bonita que estou certo que vou formar agora a minha família. Sinto que a Catarina é a ‘tal’. É um amor inabalável e é com ela que quero viver até ao final dos meus dias.” 

Em Março do ano passado, o ator foi apanhado em flagrante com Teresa Gui­lherme, o seu último romance. Na altura, não comentaram. Agora, João Ricardo assume: “Foi um episódio bonito que aconteceu na minha vida. Não demorou um mês, sequer, mas enquanto durou foi simpático.” E não faltam elogios do ator à apresentadora: “Tenho por ela um grande respeito e consideração. Foi sempre uma senhora, que se portou como uma boa amiga e companheira.” O ex-casal mantém uma boa relação de amizade, como se comprovou pelo abraço longo e sentido, depois do ator ter ganho o troféu TV 7 Dias de Televisão. “Sei que a Teresa está ali, tal como ela sabe que eu estou aqui.” João Ricardo explica também os contornos deste romance-re­lâmpago: “Achei graça à Teresa e, pelos vistos, foi mútuo. Só que há um grande pé de desigualdade entre nós. Ela é uma máquina de trabalho e não tem filhos, enquanto eu tenho.” 

A vida de pai solteiro 

João Ricardo é pai solteiro, quase des­de que Rodrigo nasceu. O filho é resul­tado da relação que manteve com Paula Gama. “Foi um amor que foi crescen­do, resultante de mais de 20 anos de amizade, mas as coisas não resulta­ram. Estou de consciência tranquila. Não tenho culpa nenhuma (pausa) ou, se calhar, tenho. Sou uma pessoa que gosta de paixões, de afetos, e demo-nos mal por isso”, afirma. 

Mesmo com o filho a morar em casa da progenitora, o ator mantém o contacto diário. “Vou levá-lo e buscá-lo à escola, janto com ele às terças-feiras e fico com ele de 15 em 15 dias. Já fui muito ansio­so em relação ao meu filho… É impor­tante que ele me diga ‘Amo-te’. Gosto de o ouvir e ele diz muitas vezes.” 

O pequeno Rodrigo está acima de tudo para o ator e também foi a ele que dirigiu o discurso, quando ganhou o troféu TV 7 Dias, o primeiro da sua carreira. “É a pessoa que mais amo. O meu filho co­move-me. Fez de mim um homem mais disponível para tudo: para as paixões, para o que quero da vida e para querer uma família. É ele que me educa, sem saber, em algumas coisas”, conta. Aconteça o que acontecer, o seu grande objetivo é dar ao filho o que nunca teve. “Quero que as coisas sejam diferentes para ele e que nada lhe falte. Por exemplo, eu sempre quis ter uma pista de automóveis… e ele tem quatro”, afirma.

O amor pelo filho é incondicional, até porque sabe que vai ser o seu único descendente. “Mesmo que queira, já sei que não vou ter mais filhos”, desabafa e prossegue: “A pessoa que ficar comigo tem de amar o meu filho como eu o amo. O meu filho só vai conhecer uma namorada minha quando tiver a certeza que é para toda a vida, para que não haja confusão na cabecinha dele. Acho que isso vai acontecer com a Catarina.” Com o novo romance, a vida de João Ricardo está estabilizada. “Hoje, sou um homem muito feliz”, conclui.»

Texto: Emanuel Rodrigues, Marta Plácido e Marisa Simões
Fotos: Nuno Moreira, Paula Alveno e Arquivo Impala

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