França: Lusodescendente está na linha da frente da batalha contra o coronavírus

Moisés Machado é chefe do Serviço de Doenças Infecciosas e Tropicais no Le Grand Hôpital de l’Est Francilien, hospital público dos arredores de Paris. Lusodescendente descreve situação em França.

08 Abr 2020 | 19:45
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Filho de emigrantes naturais de Guimarães, Moisés Machado é médico infectologista e chefe do Serviço de Doenças Infeciosas e Tropicais no Le Grand Hôpital de l’Est Francilien, um dos maiores da capital francesa. O lusodescendente descreve a forma como sistema público de saúde gaulês se preparou para a chegada da pandemia e reforça a importância da investigação científica para conter futuros fenómenos semelhantes à covid-19.

O hospital onde Moisés Machado trabalha fica a 30 quilómetros do centro de Paris

De acordo com os dados das autoridades de saúde francesas, a 7 de abril tinham morrido 10328 pessoas vítimas do novo coronavírus. Existem 109 069 casos diagnosticados e 30 mil hospitalizações.

Quando é que a comunidade médica começou a aperceber-se do impacto desta pandemia?

No mês de janeiro, quando tivemos informações da situação da China. Percebemos que não era só uma epidemia localizada, como já aconteceu com outros vírus emergentes, mas que esta doença já estava a alastrar a outros países e a que a França ia ser também atingida. Foi nesse momento que começámos a antecipar uma otimização, não só a nível local mas também governamental.

Aqui em França, identificaram-se 3 estágios da epidemia, com estratégias diferentes para conter a doença. Em fevereiro e março, a estratégia era detetar os casos positivos e manter em casa as pessoas infetadas e as que vinham do estrangeiro, de países afetados. Numa segunda fase, a estratégia era internar todas as pessoas infetadas, mesmo que não tivessem critérios de internamento, para as colocar em quarentena no hospital. Agora, neste estágio, a estratégia é completamente diferente. Não fazemos diagnóstico em pessoas que estão num estado clínico satisfatório e que não precisam de hospitalização.

A rede de cuidados de saúde está preparada para aguentar um crescimento de casos?

Está se a estratégia de confinamento generalizado, o que acontece em França há 3 semanas, for efetiva. O objetivo é evitar um excesso de pessoas nos hospitais e impedir que o número de pessoas atingidas seja demasiado para a capacidade dos hospitais. Se não houvesse essas medidas de confinamento, íamos estar na mesma situação da Itália. As capacidades dos Cuidados Intensivos foram muito aumentadas, comparativamente com o normal mas, se não houvesse essas medidas, veríamos pessoas em estados graves e talvez houvesse escolhas, como já se ouviu nos media, entre quem é que se deixa ou não viver.

É possível que venha a acontecer?

É o que se chama aqui de situação sanitária excecional. Aconteceu já aqui com o ébola. Nós já tínhamos estratégias criadas para doenças emergentes e que foram agora aplicadas a esta pandemia. A situação é de uma exceção tal, a gravidade e o grau de contágio é tal que, em certos casos, há um risco de que as unidades de Cuidados Intensivos não tenham a capacidade de acolher todos os doentes graves. É uma realidade em vários países.

 

«Houve roubos de máscaras dentro dos hospitais»

 

Em Portugal existem queixas de falta de equipamento e meios humanos por parte dos profissionais de saúde. Isso também acontece em França?

Aqui há um grande problema de equipamento, principalmente com as máscaras. Há uma tensão de abastecimento dessas máscaras. Houve aqui fenómenos incríveis de roubos de máscaras dentro dos hospitais e roubos de máscaras de maneira quase criminosa em lugares de produção. Isso causou muita tensão aqui. Mesmo nos hospitais, o tema é recorrente, todos os dias. Quantas máscaras temos no hospital, quando é que vão chegar, a quem vamos por máscara, etc. E quanto mais o vírus progredir, mais as indicações das máscaras aumentaram. Até agora, no meu hospital, houve tensões de abastecimento mas, felizmente, os funcionários sempre tiveram máscaras à disposição. Mas a quantidade é controlada.

Qual é o espírito que se vive entre as pessoas que trabalham no hospital?

Há um grande espírito de solidariedade. Houve uma reorganização completa do hospital em que se reprogramaram todos os actos não urgentes. Há médicos, enfermeiros e administrativos que se encontram numa situação de desemprego técnico. Muitas pessoas ofereceram-se para ajudar nos serviços. Também foram chamados reformados para ajudar os estudantes de medicina. Houve uma grande solidariedade, há muitas pessoas que se propõem a ajudar e nos ajudam, de facto. Isso implica dar-lhes formação mas essa ajuda tem um grande valor.

Sente medo quando vai trabalhar?

Não estou com esse sentimento. Sou prudente. Tenho uma prudência que é justificada mas que não é um medo irracional que algumas pessoas podem ter. Mas isso também tem a ver com o facto de, como médico especialista, ter tido desde muito cedo, dados sobre o modo de transmissão e também o modo de não transmissão. Estamos habituados às proteções, que já usávamos antes desta pandemia. Nos restantes profissionais de saúde e outros que trabalham nos hospitais, sente-se muitas vezes o medo.

Muitas pessoas que trabalham no hospital podem ter doenças crónicas, podem ter pessoas em casa com um certo grau de fragilidade e têm medo de se infetarem e levar a doença para casa. Há um certo nível de medo que é justificado e outro nível que pode levar a comportamentos irracionais.

A imposição da quarentena obrigatória tem sido fundamental? Aqui, em Portugal, percebemos que as pessoas estão a cumprir mas há pessoas, sobretudo os mais velhos, que insistem em não cumprir as regras de distanciamento social.

Acho que a estratégia em Portugal é de deixar, numa primeira fase, perceber se as pessoas têm auto-disciplina. Aqui em França, uma parte da população não tem auto-disciplina suficiente, o que faz com que haja medidas dissuasoras e multas. Acho que deve haver métodos dissuasivo para incentivar as pessoas a cumprir.

Como médico especialista, que consequências é que esta pandemia terá não só na forma como vivemos mas também na investigação científica?

Acho que, na comunicação dos dados científicos, vai haver uma aceleração das relações entre os diferentes países. Já houve um progresso entre e epidemia do SARS, em 2002, e esta , o estado chinês reagiu muito mais rápido. Houve publicações cientificas muito mais rapidamente e em maior número do que em 2002. Isso já representa uma melhoria e acho que isso vai continuar.

Vai haver, espero eu, uma maior comunicação de epidemias que acontecem em lugares concretos, isso vai ser mais rapidamente difundido. O que se observa agora é que há uma produção cientifica que é muito importante e que é um pouco diferente da produção habitual. É muito agradável ver que muitos sites e revistas de prestígio puseram à disposição de maneira gratuita essas produções cientificas. Em termos sociais e económicos, o que posso dizer é que as consequências vão ser enormes.

Neste momento, os países veem-se na dependência total de um sistema público de saúde que, se calhar, deveria ter sido mais bem cuidado. Acha que, a partir de agora, vai haver um reforço dos sistemas públicos?

Acho que vai reforçar a consciência de que esses sistemas são preciosos. Aqui em França, nos últimos anos, houve protestos a dizer que os meios que eram dados ao sistema de saúde em geral não era suficientes, que deveria aumentar-se o número de camas, as maternidades, o número de profissionais de saúde. Acho que esta pandemia vai reforçar a confiança de que o nosso sistema público de saúde não é um sistema como os outros.

 

Texto: Raquel Costa | Fotos: DR

 

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